terça-feira, 12 de abril de 2016


CHEGA DESSE NEGÓCIO

Manifesto contra a moda de se falar mal do Brasil

João Ubaldo Ribeiro


Sim, o Brasil tem problemas medonhos e não é um exemplo de desenvolvimento e justiça social, mas, com perdão da má palavra, já ando de saco cheio desse negócio de tudo aqui ser o pior do mundo, ninguém aqui prestar e nada aqui funcionar e sermos culpados de tudo o que de ruim acontece na Terra. Saco cheíssimo de sair do Brasil e enfrentar ares de superioridade e desprezo por parte da gringalhada, todos nos olhando como traficantes de cocaína, assassinos de índios e crianças, corruptos natos e mais uma vasta coleção de outras coisas, a depender do país e da platéia.
Tem muito brasileiro que, nessas ocasiões, bota o rabo entre as pernas, já vi muitos. Eu não. Posso ter envergonhado a Pátria por escrever mal ou me comportar de forma pouco recomendável em coquetéis literários, mas, em matéria de reagir a dichotes, nunca envergonhei. Não nego os problemas brasileiros, mas me recuso a aceitar que sejamos os únicos vilões e que não se veja em nós nenhuma qualidade positiva, a não ser sambar, distribuir abraços e beijos a todos e exibir os traseiros de nossas mulheres a quem solicitar. Aí eu dou o troco a eles
─ Um jornal noticiou que matam 200.000 crianças por ano no Brasil. Isso é uma barbaridade! O que o senhor tem a dizer sobre isso?
─ Não sei o número certo, mas matam-se crianças no Brasil, é verdade. E concordo, é uma barbaridade. Mesmo que fosse só uma criança, já seria demais. Entretanto, aqui mesmo em seu país, não faz tanto tempo assim, esse número que o senhor citou talvez fosse uma estimativa conservadora não por anos, mas por dia. Sei que o senhor é da geração pós-guerra, não tem nada com isso, nada disso se reflete sobre seu povo e, se formos cavoucar muito, é capaz de vocês descobrirem que Hitler tinha uma avó alagoana e é por isso que deu naquilo. As coisas não são tão simples e, a depender das circunstâncias, qualquer povo é capaz de matar crianças e criancinhas, seja apertando botões de bombas, o que não fazemos no Brasil, seja apertando o gatilho mesmo, o que, como vocês, também fazemos no Brasil, só que em escala muitíssimo mais modesta, nunca chegamos à perfeição de vocês.
- Como se explica o extermínio de índios brasileiros? – pergunta um americano.
- Do mesmo jeito que o extermínio dos índios americanos. Por causa da ganância, brutalidade, arrogância, ignorância etc. que são encontradas em nossos povos. Devo dizer, contudo, que o exército brasileiro nunca saiu tocando corneta a cavalo para metralhar índios, índias, indiazinhas em suas aldeias, nem enforcou índios, nem escalpelou índios ( o costume de escalpelar foi aprendido pelos índios de vocês), nem mandou cobertores contaminados por sarampo e catapora de presente para os índios.
- Como é que o senhor pode ser escritor num país de analfabetos?
- Porque, ainda que mal e porcamente, é a única coisa que sei fazer . E porque todo povo tem sua literatura. Me fazem muito essa pergunta, e fico pensando que, por sermos pobre, não temos direito a nossos romances, nossas fantasias, nossos artistas, o que parece estar implícito na pergunta. Só podemos ter pintores de paredes, bailarinos folclóricos, escultores de cerâmica, redatores de relatórios, compositores de música didática e assim por diante, ou seja, devemos ser mais pobres ainda. Mas, de minha parte, vou continuar escrevendo.
E tem muito, muito mais: não fomos nós quem devastou a bombas Hiroshima e Dresden, não fomos nós quem oprimiu a maior parte do globo terrestre, não fomos nós quem massacrou hindus, árabes, judeus, muçulmanos, curdos, armênios, chineses, indonésios, vietnamitas, zulus e uma lista que não acaba nunca, não somos nós quem queima quase todo o combustível fóssil do planeta, não somos nós... Chega desse negócio, eu não sou bandido, nós somos brasileiros, eles que vão se catar, enfurnados lá no frio escuro e triste deles.
(Veja PR, ano 26, nº.13)